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13/12/2019ㅤ Publicado às 16:37

Mesmo tetraplégico, ele já projetou mais de cem casas em Brasília.




Por Conceição Freitas, cronista*

Arquitetura, desenho, tragédia, acidente, corpo preso em tetraplegia, coragem de viver, superação. É o que se pensa, qualquer que seja a sequência, quando se chega a uma casa branca na QI 5 do Lago Norte, em Brasília, onde mora o arquiteto Francisco de Assis Lima Aragão, 66 anos, 39 deles vividos apenas com os movimentos da cabeça, com a voz, o ouvido, a consciência e o coração.

Não é da prancheta, nem do acidente, nem da força para se manter não apenas vivo, mas existindo, que brotam as melhores e mais surpreendentes histórias da vida desse arquiteto que, mesmo tetraplégico, projetou mais de 100 casas em Brasília, no Lago Sul, Lago Norte e nos condomínios de classe média e média-alta. É do coração.

Um capotamento a caminho de Fortaleza (CE), aos 27 anos, dividiu a vida de Assis em antes e depois. O acidente lhe tirou os movimentos do pescoço para baixo e quase tirou também o desejo de continuar vivendo. Foi preciso que alguém (por amor) o fizesse perceber que há vida mesmo quando o corpo passa a ser um fardo.

O arquiteto estava indo de carro a Fortaleza para se casar com a namorada, Ana Laura, grávida de três meses. No acidente, eles perderam o bebê, mas não o amor. Nos cinco anos seguintes, ela cuidou do amado e o fez perceber que podia voltar a desenhar, com a ajuda de um equipamento (um fio de metal de onde desce um fio maleável que conduz sobre o papel o lápis preso à mão de Assis).

O cearense de Sobral, filho de uma costureira (Conceição) e um caixeiro-viajante (José), desde criança gostava de desenhar, daí ter escolhido a arquitetura. Quando desceu do avião da FAB, na Base Aérea de Brasília, em junho de 1974, para o vestibular, sentiu um frio que até então desconhecia. Ao mesmo tempo, foi tomado pela amplitude de Brasília. A cidade das fotografias era de verdade, porém muito mais monumental do que as imagens no papel.

Aprovado no vestibular, teve dificuldade para se adaptar à frieza cartesiana e moderna da nova capital. “No primeiro semestre de aula, quis voltar para Fortaleza, mas acabei me acostumando”. Foi aluno de Athos Bulcão, estagiário de João Filgueiras Lima, o Lelé, e quase foi com ele ajudar no projeto do Sarah de Salvador (BA). A tragédia interceptou os planos de trabalhar com um dos mais importantes (e tecnológicos) arquitetos brasileiros.

Passados cinco anos do acidente, a namorada, Ana Laura, engravidou novamente – ter um filho era um de seus mais renitentes desejos. Complicações na gravidez a fizeram perder a criança e a tirar o útero. Outra perda viria: Ana foi embora e deixou Assis sem seu outro corpo. Tamanha dor o fez mandar erguer um barraco de madeirite num terreno da família, a 70 km do Plano Piloto, e, com a ajuda de um cuidador, ficou sozinho com sua dor. “Chorei um ano inteiro”. A mãe e o pai construíram um barraco ao lado – o amor, sempre ele.

Quando não havia mais lágrimas (um dia elas acabam, mesmo que demore muito), o arquiteto abandonado decidiu retomar a vida no ponto em que a havia deixado. Procurou ajuda terapêutica, voltou aos projetos de Arquitetura e obedeceu à terapeuta: “Você vai entrar num site de relacionamento, se não entrar, eu entro por você”. Entrou, encontrou uma namorada e namorou até que o amor acabar. A essa altura, Assis já estava inteiramente devotado à arquitetura, aos desenhos, às esculturas.

O arquiteto formado na cidade mais moderna do mundo é apaixonado por um homem: “Eu amava Oscar Niemeyer, amo Oscar Niemeyer”. Mas é quando se declara a Brasília que Assis vira o pescoço para trás, e parece em êxtase: “É muito linda, amo demais essa cidade!”. Foi-se o estudante que um dia pensou em voltar ao Ceará, por conta da frieza dos brasilienses. Não demorou a perceber que o afeto candango se expressa de um modo muito singular: “Aqui, a gente pode passar muito tempo sem ver um amigo, mas quando encontra parece que nunca se afastou, é um amor”.

O pulsante coração de Assis anda batendo no compasso dos tambores: há três anos está noivo de Silvana Raquel, uma candanga de 55 anos que mora no Núcleo Bandeirante e está sempre perto do amado. Cuida dele, fica atenta às consultas médicas, aos medicamentos, à alimentação.

Foi o destino, esse mágico invisível, que os uniu. Assis precisava de um cuidador e recebeu a ligação de uma voz feminina que falava em nome de um amigo interessada no emprego. “Gostei da voz dela e quis conhecê-la”. Logo se apaixonaram. “Ela me faz feliz”.

É o que se pode chamar de arquitetura do amor.

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* Conceição Freitas, manauense, vive desde 1992 em  Brasília. Cronista, autora de “Só em Caso de Amor — 100 Crônicas para Conhecer Brasília” e “Amantíssima”,  Vencedora do 51º Prêmio Esso de Jornalismo – Grande Prêmio Esso, com a série “Amores Possíveis”. Escreve atualmente para o “Metrópole”.


Fonte: Material enviado por CAU/BR.
Imagens: Arthur Ramos, Comunicação CAU/BR

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