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22/04/2021ㅤ Publicado às 16:02

Arquiteto e urbanista Sérgio Jatobá, autor do livro “Brasília, cidade construída na linha do horizonte

O CAU/DF reproduz, neste espaço, três crônicas do livro lançado em razão do aniversário de 61 anos de Brasília, intitulado “Brasília, cidade construída na linha do horizonte”, de autoria do arquiteto e urbanista Sérgio Jatobá.

A primeira crônica – “Um francês quis projetar Brasília” – é um relato de um fato pouco conhecido, mesmo entre arquitetos: Le Corbusier, o assim denominado pai do urbanismo moderno, também queria assumir a paternidade da primeira cidade modernista edificada no mundo.

A segunda crônica “Brasília, o espanto inexplicado” foi escrita a partir de um texto de Clarice Lispector sobre Brasília, comenta-se fatos, que parecem espantosos, sobre a história da Capital.

Por fim, o terceiro texto intitulado “Brasília e Clarice” traz breves reflexões a partir de trechos das crônicas de Clarice Lispector sobre Brasília.

LEIA ABAIXO:

UM FRANCÊS QUIS PROJETAR BRASÍLIA

Um francês, ou melhor, um franco-suíço, poderia ter sido o autor do projeto urbanístico de Brasília. O arquiteto, urbanista e pintor Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido por Le Corbusier, muito antes da decisão de construir a nova capital da república brasileira, já manifestava o desejo de projetar aquela que seria a primeira cidade inteiramente concebida de acordo com os princípios do urbanismo moderno.

Essa história inicia-se em 1922, no centenário da independência, quando o monumento, representando a pedra fundamental da construção de Brasília, foi assentado em uma área próxima à cidade de Planaltina, que naquela época ainda pertencia ao Estado de Goiás. O núcleo urbano, oficialmente fundado em 1859, com o nome de Mestre D´Ármas, ficou inserido no chamado “Quadrilátero Cruls”, demarcado pela Comissão Explorada do Planalto Central do Brasil, a “Missão Cruls”, expedição designada pelo então presidente Floriano Peixoto para estudar possíveis áreas para construção da capital federal.

Nesse mesmo ano, Le Corbusier projetava a sua Ville Contemporaine, projeto nunca edificado de uma cidade de três milhões de habitantes, no qual já ensaiava as ideias que viriam a constituir os princípios do urbanismo moderno, consagrados no manifesto denominado “Carta de Atenas”, lançada no quarto Congresso de Arquitetura Moderna – CIAM em 1933. Em 1926, quando a ideia da construção da nova capital do Brasil já circulava no mundo, Le Corbusier recebe uma carta do artista francês Fernand Léger informando-lhe da intenção brasileira de transferir sua capital para o interior do país. Outro amigo, o poeta suíco Blaise Cendrars, que já havia visitado o Brasil e conhecia Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, também escreveu ao arquiteto no mesmo ano citando o local de construção da nova cidade: “Planaltina: em região que até hoje permanece virgem”.

Assim, em 1929 quando Le Corbusier faz sua primeira visita ao Brasil, o desejo de ver materializado em um plano de grande envergadura seu ideal urbano esboçado na Ville Contemporaine era, segundo palavras do próprio arquiteto: “um sonho que estava em minha mente”. Le Corbusier tentou emplacar sua esdrúxula proposta de cidade-viaduto no Rio de Janeiro, não deu certo. Em 1936, voltou ao Brasil desta vez, já como principal líder do movimento do urbanismo moderno. Nesta ocasião, foi o consultor do projeto do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio Capanema no Rio de Janeiro, a primeira obra de destaque da arquitetura moderna brasileira.

O projeto do MES, como é conhecido entre os arquitetos, foi desencadeador de uma série de outras obras importantes, que culminaram no reconhecimento internacional da nossa arquitetura, mas também o motivo de um episódio de ciúme de Le Corbusier, relatado pelo historiador Yves Bruand. O projeto publicado na famosa edição da revista Architecture d’aujourd’hui dedicada à arquitetura brasileira em 1947 trazia a informação de que o projeto original seria de Le Corbusier, adaptado pela equipe brasileira liderada por Lucio Costa. Na verdade, os primeiros esboços de Le Corbusier para o projeto foram completamente modificados pelos brasileiros, resultando em um edifício no qual já eram patentes os traços marcantes da arquitetura brasileira.  

Contudo, é inegável a influência que Le Corbusier exerceu na geração de arquitetos brasileiros surgida a partir dos anos 1930. Assim, quando a construção de Brasília já era uma decisão tomada por JK, a Subcomissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal, instituída em 1955, propos convidá-lo para supervisionar o projeto urbanístico de Brasília. O arquiteto deve ter se entusiasmado com a possibilidade de, enfim, realizar seu acalentado sonho.

Segundo Lauro Cavalcanti, em “Brasília: a construção de um exemplo” (1), Le Corbusier chegou a enviar uma carta a JK se oferecendo para coordenar o projeto, invocando a parceria bem-sucedida no Ministério da Educação e Saúde. A carta, entretanto, não foi respondia por JK. A proposta de ter um arquiteto estrangeiro à frente daquela que seria a maior empreitada urbana brasileira foi rejeitada pela maior parte dos arquitetos brasileiros e a ideia do concurso nacional se impôs.

Embora não tenha participado do projeto, as propostas de Le Corbusier ficaram bem impressas no plano- piloto de Brasília. Le  Corbusier sugeriu não só o nome “plano-piloto”, em carta endereçada ao Marechal José Pessoa em 1955, mas é também o mentor intelectual do urbanismo moderno. Lucio Costa, contudo, fez a sua própria tradução das ideias corbusianas, rejeitando, por exemplo, seus típicos arranha-céus e reinventado as Unidades de Habitação nas superquadras.

O fato de não poder ter projetado Brasília, experiência urbana desenvolvida a partir de suas ideias, embora distinta da sua imaginada Ville Contemporaine, pode ter frustrado Le Corbusier. Assim, pode parecer uma ideia meio descabida, mas seriam as críticas raivosas de alguns estrangeiros ao projeto urbano de Brasília só rejeição ao urbanismo moderno ou algum tipo de inveja por não terem sido eles, os inventores do modernismo urbanístico, os autores daquela que foi sua única experiência bem-sucedida no mundo?

(1) CAVALCANTI, Lauro. Brasília: a construção de um exemplo in Revista Arcos, Volume 1, número único. 1988.

Extraído de JATOBÁ, Sergio Ulisses. Brasília, cidade construída na linha do horizonte. Brasília. 2021


BRASÍLIA, O ESPANTO INEXPLICADO

Clarice Lispector, quando visitou Brasília pela primeira vez em 1962, escreveu um texto ao mesmo tempo onírico e visionário sobre a cidade então nascente. Em certo trecho ele diz: “os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil, eles ergueram o espanto inexplicado”.

É possível tentar decifrar essa frase em, pelo menos, duas perspectivas: primeiro, quanto a previsível perplexidade da escritora, diante de uma cidade absolutamente diferente de todas as outras que conhecia, cuja beleza artificialmente construída sobre uma paisagem natural, que parecia destinada ao seu pouso, ao mesmo tempo lhe fascinava e assustava; segundo, sob a perspectiva de que o espanto que intrigou Clarice, e possivelmente a muitos outros que conheceram Brasília naquele momento, ainda permanece intrigando mentes e corações mais de meio século após sua inauguração.

Sem a pretensão de explicar o espanto de Clarice e de muitos outros, deve se admitir, contudo, que a trajetória histórica de Brasília tem fatos espantosos. Nesse texto procurei resgatar alguns desses fatos, a maior parte deles, provavelmente já conhecidos de quem estuda a história dessa cidade, mas que a meu ver, são, no mínimo, inusitados e curiosos. E mesmo que hoje, passado o impacto do seu conhecimento, talvez já não espantem tanto, presume-se que, ainda assim, podem ajudar a decifrar Brasília, que embora seja uma cidade jovem, tem uma longa trajetória de planejamento na história.

Brasília já existia antes de Brasília: é fato sabido, mas não menos espantoso, que Brasília, provavelmente, é uma das poucas cidades no mundo cuja história se inicia, pelo menos, 2 séculos antes da inauguração. A ideia da sua criação, como se sabe, remonta a meados do século 18, quando o Marquês de Pombal propõe, pela primeira vez, a transferência do governo do Reino de Portugal para o interior da colônia brasileira. Mas, antes disso, em 1749, Francesco Tosi Colombina, cartógrafo italiano, a serviço do Reino, já havia visitado Goiás e desenhado o mapa da região central do Brasil, indicando ali a localização mais adequada para a nova cidade. Portanto, pode-se dizer que, 211 anos antes de existir, a ideia de Brasília já existia na corte portuguesa.

A cidade é moderna, mas seu nome é antigo: foi José Bonifácio, o “patriarca da independência”, em 1823, quem primeiro sugeriu o nome Brasília para designar a futura capital do Brasil independente. Entretanto, o primeiro estudo urbanístico oficial para Brasília, elaborado no âmbito da Comissão da Localização da Nova Capital, por Raul Penna Firme, José Oliveira Reis e Roberto Lacombe, em 1955, batizou a futura cidade de Vera Cruz, primeiro nome dado às terras brasileiras pelos descobridores portugueses. O nome Brasília só foi oficialmente proposto em 1956 pelo presidente da Comissão Especial da Mudança da Capital, deputado Pereira da Silva e oficializado pela Lei 2874 de 19 de setembro de 1956.

O primeiro jornal de Brasília nasceu em Londres: Hipólito da Costa, jornalista e diplomata brasileiro, fundou em Londres, em 1813, o jornal Correio Braziliense, considerado o primeiro jornal brasileiro, com 29 edições entre 1808 a 1823. O Correio Braziliense foi um dos principais veículos divulgadores das ideias emancipatórias e da defesa da mudança de capital da então colônia portuguesa para o interior do país. Em 21 de abril de 1960, quando os Diários Associados resolveram fundar o primeiro jornal de Brasília, Assis Chateaubriand, então seu diretor, resolveu adotar o nome do histórico periódico, que fazia alusão ao adjetivo pátrio da capital.

Urbanista visionária: um dos cinco projetos urbanos elaborados para Brasília, antes do Concurso do plano- piloto, foi o da engenheira Carmen Portinho, primeira mulher urbanista no Brasil. A proposta dela, elaborada em 1936, como tese de pós-graduação, era incrivelmente vanguardista e incorporava conceitos do então nascente urbanismo moderno. Portinho antecipou no seu projeto elementos modernistas que viriam a constar no plano-piloto de Brasília de Lucio Costa, como o zoneamento funcional, a hierarquização de vias, a separação de tráfego de pedestres e veículos, os edifícios sob pilotis e até uma grande plataforma central destinada ao transporte ferroviário e aéreo. No Centro de Negócios da capital, Portinho projetou arranha-céus de 40 andares e 150 metros de altura. O urbanista e historiador Jeferson Tavares assinala que; em um período em que pouco se sabia dos arranha-céus, é espantosa a semelhança entre as propostas de Carmen para os edifícios e o projeto do Ministério da Educação e Saúde, elaborado posteriormente e conhecido como símbolo da Arquitetura Moderna brasileira.

A capital que emendou as águas: a Estação Ecológica de Águas Emendadas, localizada em Planaltina, é uma das principais unidades de conservação do Distrito Federal. Seu nome advém do fato de que ali ocorre um interessante fenômeno: de um mesmo ponto geográfico brotam nascentes de cursos d´água formadores das duas principais bacias hidrográficas do Brasil e da América do Sul: as bacias Amazônica e do Prata. Próximo a esse ponto, há nascentes e cursos d´água da terceira maior bacia hidrográfica do país, a do rio São Francisco. Ocorre que a localização do DF nessa área de confluência das três grandes bacias hidrográficas não foi fortuita. Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro, historiador brasileiro, no seu mais conhecido texto “A questão da capital: marítima ou no interior?”, publicado em 1877, relata suas viagens exploratórias a Goiás e aponta a região situada entre as lagoas Formosa, Feia e Mestre D´Armas, como o melhor local para instalar a nova capital. O fenômeno das águas emendadas foi descrito no Relatório Cruls, publicado em1894, como um “capricho singular da natureza”, que reforçava a dimensão simbólica de unidade e integração nacional atribuída à mudança da capital.

O primeiro estudo de impacto ambiental para a construção de uma cidade: o Relatório Belcher, realizado por uma empresa americana, no período de 1954-55, a partir de um amplo levantamento aerofotogramétrico, contratado à empresa brasileira de aerofotogrametria Cruzeiro do Sul, apresentou um detalhado estudo temático das possíveis áreas para a delimitação do Distrito Federal, definindo 5 (cinco) sítios para implantação da capital, designados pelas cores vermelho, amarelo, azul, verde e castanho. O Relatório pode ser considerado o primeiro estudo de impacto ambiental no mundo para a construção de uma cidade. O próprio documento ressalta o ineditismo e a importância de se planejar uma área urbana a partir do levantamento e da análise de todos os condicionantes físicos e econômicos relacionados a sua localização. Antecipando análises futuras, o estudo já apontava as principais fragilidades ambientais do DF: o solo, argiloso e bem drenado, mas muito suscetível aos processos erosivos e os recursos hídricos, de pequeno volume, por ser esta uma região alta e de nascentes, sujeitos à rápida degradação em função do crescimento urbano. Fato a destacar: o Relatório Belcher foi abandonado e praticamente destruído, tendo sido recuperado para a elaboração do Plano Estrutural de Ordenamento Territorial do Distrito Federal – PEOT em 1977, sendo posteriormente editado pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal – Codeplan em 1982.

O Lago Paranoá não é tão artificial quanto se supõe: foi também no Relatório Cruls, primeiro estudo do local onde se localizaria futuramente Brasília, que o botânico Glaziou vislumbrou a possibilidade de ali se construir o Lago que emolduraria paisagisticamente a cidade. Explorando o vale dos rios Torto, Gama, Vicente Pires, Riacho Fundo, Bananal, formadores da bacia hidrográfica do Paranoá, Glaziou se disse “cem vezes encantado”, especialmente com o rio Torto. Nas suas palavras: “…nada vi que fosse comparável ao tabuleiro do Rio Torto”. Descreveu, inclusive, que um outro lago já teria existido no local onde é o atual Lago Paranoá, em eras remotas, e que “…o excedente desse lago, atravessando uma depressão do chapadão, acabou, com o carrear dos saibros e mesmo das pedras grossas, por abrir nesse ponto uma brecha funda, de paredes quase verticais pela qual se precipitam hoje todas as águas dessas alturas. É fácil compreender que, fechando essa brecha com uma obra de arte (dique ou tapagem provida de chapeletas e cujo comprimento não excede de 500 a 600 metros, nem a elevação de 20 a 25 metros) forçosamente a água tomará ao seu lugar primitivo e formará um lago navegável em todos os sentidos, num comprimento de 20 a 25 quilômetros sobre uma largura de 16 a 18”. A sugestão de Glaziou foi encampada pela subcomissão de planejamento urbanístico da Comissão da Localização da Nova Capital, que definiu que o plano-piloto de Brasília “deveria ter como uma das suas condicionantes o Lago Paranoá”.

A epopeia da construção: não há dúvida de que o curto período de construção é um dos fatos mais espantosos na trajetória histórica de Brasília. O pesquisador El-Dahdah Farès em “Brasília, um objetivo certa vez adiado” calculou precisamente a duração da obra: 1.310 dias ou 3 anos, 7 meses e 5 dias. Desacreditada desde o início, a inauguração da cidade na data programada por JK surpreendeu até os mais céticos. Em um tempo recorde para uma obra de tal magnitude foram projetadas e concluídas as principais construções: a Praça dos 3 Poderes e os edifícios do Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal; o Palácio da Alvorada, inaugurado em junho de 1958, a Esplanada dos Ministérios com 11 prédios; a plataforma rodoviária, o Hospital de Base com 500 leitos, o Brasília Palace Hotel; o aeroporto provisório; a Barragem do Torto, a estrutura básica da Catedral Metropolitana; a estrutura básica do Teatro Nacional; a Ermida Dom Bosco; a Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima; escolas; clube náutico e a Concha Acústica. Também foram instalados 59 mil metros de tubulação de água, 33 mil metros de rede de esgoto e 79 mil metros de águas pluviais, além da construção de uma adutora, reservatório e a hidrelétrica de Cachoeira Dourada. A estrutura viária básica do plano-piloto foi instalada, com 300 km de extensão, e construídas as primeiras superquadras e 500 casas na W3 Sul, totalizando 3000 moradias. Além disso, milhares de quilômetros de rodovias e ferrovias foram construídos para ligar a capital ao resto do país.  A construção de Brasília representou um marco político, econômico e cultural e projetou o Brasil no mundo, criando um sentimento de autoestima nacional único na nossa história.

A cidade planejada esperou 20 anos para ter o seu primeiro plano de ordenamento territorial: o Plano Estrutural de Ordenamento Territorial do Distrito Federal – PEOT foi concluído em 1977, vinte anos após o anúncio do plano-piloto de Brasília (PPB) como o vencedor do concurso de projetos para a nova capital. O PEOT teve como seus principais objetivos preservar o caráter político-administrativo da capital federal e direcionar as áreas de expansão urbana para o quadrante sudoeste do DF, entre as cidades de Taguatinga e Gama. Este eixo de crescimento urbano prolongava-se na direção de Luziânia e da então crescente periferia metropolitana do DF. Ao orientar o crescimento nesse eixo, pretendia-se fortalecer os subcentros polarizadores da Região Geoeconômica de Brasília e simultaneamente preservar Brasília e evitar ocupações urbanas na bacia hidrográfica do Lago Paranoá. As manchas de expansão urbana definidas no PEOT serviram de base para a criação das novas cidades que surgiram no DF a partir do final dos anos 1980: Samambaia, em 1989, e em 1983, Santa Maria, São Sebastião, Recanto das Emas e Riacho Fundo.

Do gesto primário à metrópole complexa: É um fato espantoso pensar que o traço inicial de Lucio Costa, inspirado no gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse; tenha se transformado, em somente 60 anos, em uma metrópole de mais de 4 milhões de habitantes. A metrópole brasiliense extrapolou o quadrilátero do DF e é considerada na hierarquia urbana do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a terceira metrópole nacional em área de influência, antecedida em importância somente pelas metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro.

Uma contradição intrigante: Brasília intriga porque, pensada idealmente para ser a capital da esperança de um país socialmente mais igualitário, desde a sua criação, refletiu e exacerbou em seu pequeno território as contradições de uma nação que ainda é muito desigual. Se a história da capital do Brasil possui fatos que geram surpresa e admiração, esse parece ser, de fato, um espanto inexplicável. Na verdade, é um espanto explicável à luz da história social do Brasil, mas que permanece inexplicável quando se constata que o Brasil moderno que se pensou em construir a partir da nova capital ainda possui traços de inquietante arcaicidade.

Extraído de JATOBÁ, Sergio Ulisses. Brasília, cidade construída na linha do horizonte. Brasília. 2021


BRASÍLIA E CLARICE

A escritora Clarice Lispector escreveu duas crônicas sobre Brasília. A primeira, Brasília, escrita na sua primeira visita à cidade, em 1962 e publicada originalmente na revista  Senhor (1963), e posteriormente no livro A Legião Estrangeira (1964). A segunda, Brasília: Esplendor, foi escrita quando Clarice visitou a capital doze anos depois, em 1974. As duas crônicas foram reunidas nas antologias Visão do esplendor (1975) e “Para não Esquecer” (1999). Frases retiradas destes textos me inspiraram reflexões a partir do universo lispectoriano (1).

“Brasília é construída na linha do horizonte.”

Uma das coisas mais destacadas em Brasília é a onipresente visão da linha horizonte. Não é por acaso. O Plano Piloto foi construído sobre um domo inserido em um vale circundado por chapadas. Para ajudar a visualização, pense em uma bacia que teve o seu fundo empurrado para cima. Este perfil topográfico, aliado ao projeto da cidade, com grandes espaços abertos e edifícios baixos, permite uma visualização do horizonte quase que constante e a sensação de que a cidade está pousada sobre ele.

“Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado” (…) A criação não é uma compreensão, é um novo mistério (…) Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais (…) Este grande silêncio visual que eu amo.

Brasília é tão artificial quanto qualquer cidade também o é. A artificialidade da sua criação não exige compreensão, é um novo mistério, no dizer de Clarice. Por isso, ela, sendo a cidade do futuro, “é de um passado esplendoroso, que já não existe”. Brasília é a segunda natureza do cerrado de onde brotou. Lucio Costa traçou retas onde só existia a tortuosidade das suas árvores. Niemeyer colocou curvas nelas. Na Brasília artificial, Clarice descobriu que era natural amar o seu grande silêncio visual.

“Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado”

Brasília é uma cidade espantosa. Não é só o espanto da beleza do seu projeto urbanístico e dos seus palácios que rivalizam com o que de mais belo já foi construído. Ou o de ter sido construída no exíguo prazo de pouco mais de 3 anos em um país de obras inacabadas. Brasília já existia antes de existir. A ideia da sua criação ocorreu 2 séculos antes da sua inauguração quando o Marquês de Pombal propôs a transferência do governo do Reino de Portugal para o interior da colônia brasileira. Brasília, a nova Lisboa, cujo nome foi primeiro sugerido por José Bonifácio, em 1823, já foi chamada de “Vera Cruz”, primeiro nome dado às terras brasileiras pelos descobridores portugueses, no primeiro estudo urbanístico oficial da cidade. Brasília intriga porque, pensada idealmente para ser a capital da esperança de um país socialmente mais igualitário, refletiu e exacerbou em seu pequeno território as contradições de uma nação que ainda é muito desigual. Se a história da capital do Brasil possui fatos que geram surpresa e admiração este parece ser, de fato, um espanto inexplicável.

“Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto”.

O bater de asas de uma borboleta no Jardim Botânico pode provocar um temporal em Sobradinho.

“Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez.”

Clarice desordenou ideias para decifrar a cidade ordenada. A ordem espacial de Brasília a assustou e a fascinou ao mesmo tempo. Pelos olhos do delírio, ela procurou enxergar a lucidez. Na sua insônia, imaginava estar no sonho de uma cidade que despertaria o futuro.

“Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. (…) A cidade de Brasília fica fora da cidade”.

Brasília é dispersa no espaço. Uma cidade espalhada. Quando Brasília foi inaugurada não havia espaço no Plano Piloto para os candangos que a construíram. Então colocaram os candangos em núcleos urbanos afastados: as Cidades-satélites, cidades dormitórios gravitando em torno da cidade principal. As satélites cresceram, viraram cidades. E reivindicam identidade própria. Agora temos várias brasílias em cada uma das cidades de Brasília. A verdadeira Brasília está fora de Brasília. Brasília já não é uma só. O Plano não é mais o piloto da cidade.

 “(…) Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar.”

A capital aérea de Lucio Costa foi traçada no chão, com um “gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse”. Mas o seu projeto alado a fez mais bela vista do alto. Os astronautas a elegeram como uma das mais belas cidades fotografadas do espaço. Brasília encanta e assusta, as vezes gera repulsa, mas é singular e será eterna até que se torne etérea.

(1) Os textos em itálico são de autoria de Clarice Lispector, extraídos das crônicas ‘Brasília” e “Brasília Esplendor”.

Extraído de JATOBÁ, Sergio Ulisses. Brasília, cidade construída na linha do horizonte. Brasília. 2021

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